quinta-feira, 12 de junho de 2014



O QUE É SUPEREGO?


  Certamente é um dos conceitos de Freud que mais adentrou no vocabulário do senso-comum. Por isso mesmo, de imediato exclua da sua cabeça a idéia de que o superego é o conjunto de leis, normas e regras da sociedade que limitam os desejos dos indivíduos. Essa definição tosca foi uma dentre as muitas tentativas feitas pelos psicanalistas americanos e psicólogos de outras abordagens para encaixar a psicanálise no quadro das teorias psicológicas e solapar a novidade e o caráter surpreendente das elaborações freudianas. Afinal, a idéia de que o indivíduo introjeta as normas sociais e se comporta sob seu controle mesmo na ausência expressa delas é uma noção que existe desde Platão e sua teoria do humano como sendo um cocheiro que deve controlar dois cavalos: um que representa seus desejos e impulsos e outro que faz o papel das normas sociais.

Para verificarmos as peculiaridades da noção de superego em Freud, é preciso em primeiro lugar saber por que diabos o médico vienense resolveu criar esse conceito logo na década de 1920 quando a maior parte de sua teoria já estava estabelecida. Lembrem-se: conceitos sempre são úteis, funcionais. Ninguém (ou melhor, talvez os filósofos) cria conceitos do nada e para o nada. Eles nascem de uma problemática e, pelo menos em tese, servem para buscar soluções para a mesma.
Com o conceito de superego não foi diferente. Ele brotou de duas experiências clínicas observadas por Freud. A primeira delas foi a culpa, bastante proeminente na neurose obsessiva em que muitas vezes o sujeito realiza atos compulsivos como contar o número dos azulejos do chão do banheiro como forma de evitar uma catástrofe que só aconteceria em sua fantasia. Durante a análise, é muito provável se verificar que a catástrofe era, na fantasia do sujeito, o castigo por um ato libidinoso ou agressivo cometido há muito tempo atrás. A compulsão a contar, portanto, constituiria uma forma de expiar a culpa pela ação que não deveria ter sido levada a cabo.

Outra experiência clínica que está nas raízes da noção de superego são os delírios persecutórios, em boa parte dos quais o sujeito escuta nitidamente uma voz que descreve suas ações, do tipo “Agora ele está andando, agora ele está sentado” ou que lhe insulta, recordando ao sujeito possíveis delitos cometidos, como “Você é um fracassado! É tudo culpa sua” (quem assistiu à novela ‘Caminho das Índias’ vai se lembrar prontamente do personagem Tarso). O passo decisivo dado por Freud foi o reconhecimento de que essa instância persecutória dos delírios dos paranóicos e esquizofrênicos se faz presente na mente de todo mundo, não só dos psicóticos. Nesses, em virtude da dinâmica própria da psicose, essa instância se individualizou e adquiriu um caráter semelhante a de uma segunda personalidade: é como se o psicótico escutasse uma pessoa falando com ele. No caso das pessoas não-psicóticas, o perseguidor não aparece como uma segunda personalidade mas como a própria consciência do sujeito. Aqui, uso o termo “consciência” no sentido de “Minha consciência pesou”, ou seja, como aquela parte de nossa personalidade que nos acusa por ações “erradas” e/ou que nos faz sentirmo-nos responáveis pelas mesmas. É justamente para dar corpo e acabamento conceitual a essa “consciência” que Freud introduz o termo superego. Só que tem um detalhe: Freud avança, pois se o pai da psicanálise se contentasse apenas em inventar um nome psicanalítico para a “consciência” não haveria nenhuma novidade na sua empreitada, seria apenas uma troca de termos. Freud vai mostrar em primeiro lugar de que forma essa “consciência” se forma e, o principal e mais surpreendente, que essa “consciência” está no inconsciente!

Caro leitor, terminamos o último post com o vislumbre do avanço teórico-conceitual empreendido por Freud a partir de sua noção de superego. Dissemos que o ponto de partida foi o fenômeno da consciência moral, mas ressaltamos que a intenção de Freud foi trazer à luz um acontecimento psíquico bem mais complexo. É que o pai da psicanálise não estava interessado em descrever o óbvio. Pelo contrário, a teoria psicanalítica pode ser descrita como a tentativa de trabalhar o estranho, o insólito, aquilo que aparentemente é incompreensível. O conceito de superego se presta exatamente a essa função, a tentar explicar, por exemplo, porque uma pessoa não se permite vencer na vida, galgar postos mais altos ou porque alguém sofre de um imenso sentimento de culpa para o qual não consegue conceber razão alguma. Veremos isso, ao examinarmos como Freud articula as origens da formação do superego.

Todos vocês devem conhecer as linhas gerais daquilo que o médico vienense chamou de “complexo de Édipo”: na infância, meninos e meninas estão fortemente apegados à mãe e são obrigados a deixar esse estado de extrema satisfação pela interferência daquele que possui a mãe por direito: o pai. Pois bem, esse estado de coisas perfeitamente verificável em qualquer família, pode ser interpretado como a personificação da entrada da criança no mundo social. Ela deve abdicar de uma satisfação, acatar a lei que limita seu gozo e, como fenômeno colateral, passar a odiar aquele que encarna o papel de limitador.

Agora, imaginem que essa etapa fundamental do desenvolvimento da criança não termine nunca, que ela permaneça para sempre não mais como a relação da criança com os pais, mas como a relação da criança consigo mesma. É exatamente isso o que acontece. Após o término desse período da relação triangular pai-mãe-filho, na cabeça da criança começa a ser formado um personagem que vai passar a exercer a mesma função que o pai na realidade, de maneira tal que, mesmo na ausência do pai, o sujeito se veja limitado em sua satisfação com as coisas do mundo. Mais, e esse é o passo fundamental de Freud, esse personagem que surge na cabeça da criança – que vocês já devem ter percebido tratar-se do superego – adquire características muito mais cruéis que as do pai. Além de lembrar ininterrupatamente ao sujeito que ele não pode gozar de tudo, o superego vai culpá-lo por um dia ter gozado daquela mulher que só pertencia ao pai. Ou seja, o aspecto essencial do superego não é o de limitador, mas daquela instância mental que não nos deixa sentirmo-nos inocentes.
Por não compreenderem isso, muitas pessoas erroneamente dizem que Deus é uma personificação do superego. Se alguma selvageria analítica dessa pudesse ser feita (chamo de selvageria analítica essa bobagem de explicar a religião com conceitos psicanalíticos como Freud fez em ‘O Futuro de uma Ilusão’), o superego deveria ser identificado com o demônio, ou seja, como a figura que faz com que o fiel não se lance na graça do Deus que perdoa os pecados por constantemente fazê-lo sentir-se culpado pelas faltas cometidas.

É por isso que Lacan e Melanie Klein faziam questão de ressaltar a ferocidade do superego. Na sua eterna culpabilização do sujeito, ele faz com que muitos não se sintam em condições de usufruir da vida, pois cada pequeno gozo parcial passa a ser significado como uma rememoração do gozo proibido das primeiras relações com a mãe. E o ponto essencial é que tudo isso ocorre a portas fechadas, por trás das cortinas. No palco da consciência, o sujeito só se observa se estrepando na vida, se prejudicando tão logo conquista uma vitória ou contraindo dívidas. Há até aqueles que cometem crimes apenas para serem flagrados, irem para a cadeia e lá se verem finalmente recebendo a punição pelo incesto precoce com a mãe.

Portanto, caro leitor, esqueça essa versão aguada do superego que ficou pra tradição. Lembre-se do superego como aquela voz ameaçadora que no inconsciente diz: “Um dia eu fui seu pai, mas seu pai não pôde lhe castigar pelo enorme pecado que cometeu. Dormir no colo da própria mãe??? Só eu tenho esse direito. Por isso você vai se sentir culpado pelo resto da vida e nunca poderá vencer pois você não merece experimentar nem mais uma satisfação sequer. Acho que o melhor é você se punir, se castigar, pra ver se consegue expiar um pouco de sua culpa.”
Pra finalizar um conselho: converse com seu superego…

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